Ao mesmo tempo, os entes da federação tiveram de manter os salários dos servidores públicos sem reajuste em 2020 e 2021 como contrapartida para receber as transferências bilionárias da União. Na prática, portanto, as receitas subiram e as despesas ficaram estagnadas, turbinando os caixas dos municípios.
“Não tem um sinal de catástrofe generalizada para os municípios no horizonte, mas tem uma deterioração pronunciada e, sobretudo, a manutenção desse regime viciado de irresponsabilidade fiscal” Marcos Mendes, pesquisador do Insper
Com o fim dessa trava, voltou a se repetir um cenário já conhecido: Estados e municípios contrataram despesas obrigatórias com base em receitas conjunturais. Além dos reajustes salariais aos servidores, que pressionaram pela recomposição das perdas inflacionárias e por contratações, houve novas pressões vindas de Brasília. Dentre elas, a política de reajuste real do
salario mínimo e a imposição de pisos para a remuneração de determinadas categorias, como é o caso da enfermagem.
Dados da CNM apontam que os gastos com pessoal e encargos sociais cresceram 13,2% em 2023 na comparação com 2022, o que representa uma alta de R$ 47,6 bilhões em valores nominais, ou seja, sem correção pela inflação.
Também contribuiu para a expansão fiscal no período o aumento de 25,3% do investimento público, um incremento de 15,5 bilhões. O movimento foi puxado pela retomada de obras públicas e aquisição de maquinário nas proximidades das eleições municipais.
Já as receitas tiveram um crescimento bem mais modesto no período: de 6,8%, o equivalente a uma arrecadação adicional de R$ 57,4 bilhões. Ou seja quase todo o dinheiro extra que entrou nos cofres em 2023 foi consumido pelo aumento das despesas com pessoal.
Os municípios vão ser pequenos laboratórios do problema fiscal mais geral que o País vai passar, com despesas crescendo bastante e as receitas com uma certa incerteza. João Pedro Leme, analista da consultoria Tendências
Empréstimos com garantia da União disparam
Uma preocupação adicional é de que a piora dos municípios acabe respingando na situação fiscal da União. Isso porque as operações de crédito realizadas pelos prefeitos, com garantias internas do Tesouro Nacional, mais do que dobraram de tamanho nos últimos anos.
O saldo devedor passou de R$ 6,9 bilhões, em 2020, para R$ 14,4 bilhões em 2023, segundo dados compilados pela equipe econômica no anexo de riscos fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2025.
Nesse momento de piora do resultado primário dos municípios, o risco desses empréstimos é justamente o governo federal ter de arcar com a dívida no caso de inadimplência – algo que vem se tornando frequente.
Em 2022, a União honrou R$ 9,8 bilhões em dívidas inadimplidas de Estados e municípios e, em 2023, esse valor foi de R$ 12,3 bilhões. Até fevereiro de 2024, o governo federal já havia sido instado a custear R$ 1,6 bilhão em inadimplências estaduais e municipais.
“O Tesouro tem feito várias flexibilizações para conceder créditos. Na prática, elas estão facilitando a concessão de crédito para Estados e municípios, e a gente sabe que isso já deu muito errado no passado.” Gabriel Leal de Barros, sócio da Ryo Asset e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI)
Para a possibilidade de tomar empréstimo, o Tesouro classifica os entes com notas que podem variar de A a D. São levados em conta três critérios: endividamento, índice de liquidez e poupança corrente – e apenas os que alcançam notas A e B, nesse conjunto de fatores, têm acesso à garantia federal.
A ampliação dos empréstimos com aval da União ocorre em meio à ampliação dos limites de concessão fixados pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), colegiado formado pelos ministérios da Fazenda e Planejamento e pelo Banco Central. Essas flexibilizações vêm aumentando o espaço que Estados e municípios têm para realizar esse tipo de operação, seja com ou sem garantia do governo federal.
“Acho que (os prefeitos) não deveriam fazer esses empréstimos, mas eles precisam para realizar investimentos. São os municípios que cuidam do cotidiano do cidadão”, afirma Ziulkoski.
“A cidade tem, por exemplo, uma sala de vacinação, ai a ministra vai lá e diz que vai iniciar a campanha. Ela discursa e vai embora. Mas nos outros dias, sábado e domingo, quem está lá vacinando? É uma agulha sozinha? Ou tem de ter alguém recebendo hora extra, com carro e motorista à disposição?”, questiona.
Procurado pela reportagem, o Tesouro Nacional afirmou que o resultado primário dos municípios não deve ser olhado de forma isolada e que o endividamento desses entes “é menor do que em 2020 e o saldo de caixa acumulado, maior.”
De acordo com o órgão, em 2020, o saldo de dívida líquida interna e externa das cidades, sobre o PIB, era de 4,08%. Em 2023, diz o Tesouro, esse indicador caiu para 1,99%. “Em termos de saldo de caixa sobre o PIB, enquanto em 2020 o indicador era de apenas 0,67%, em 2023 subiu para 2,13%”, afirma a nota.
“Isso significa dizer que os municípios têm menor endividamento e maior saldo de caixa, evidenciando maior robustez fiscal e não menos”, alega o Tesouro. O órgão diz, ainda, que não há discricionaridade na concessão desses avais e que “são cumpridos os requisitos para a realização de tais operações”.
Não raro, essas pendências financeiras entre União e os entes da federação acabam sendo judicializados, com um histórico de decisões que favorecem Estados e municípios. Atualmente, por exemplo, o governo federal está impedido de executar as contragarantias de diversos Estados que obtiveram liminares no STF.
“Quando um prefeito ou governo sabe que, em última instância, vai recorrer ao Supremo, e o STF vai dar ganho de causa, ele tende a ser menos responsável em termos fiscais. Ele pode se endividar e, na hora que não conseguir pagar essa dívida, pode empurrá-la para a União”, avalia Mendes, do Insper.