Vacinação lenta e pouco uso de máscaras e distanciamento social contribuem para a permanência do novo coronavírus no Brasil de forma endêmica.
Com controle precário e vacinação lenta, é possível que país conviva com o coronavírus por muito tempo ainda — Foto: Getty Images via BBC
Mais de um ano depois de ter começado, a pandemia de Covid-19 ainda não dá sinais de que vá acabar em pouco tempo. Menos ainda no Brasil, onde seu controle é precário, com vacinação lenta, queda da adesão às medidas preventivas e omissão de agentes públicos em implementar, estimular, controlar e fiscalizar o cumprimento de normas de distanciamento social. Além disso, para piorar a situação, novas variantes do novo coronavírus vêm surgindo e se espalhando pelo país. Por isso, embora seja difícil prever, muitos especialistas acreditam que ela se estenderá pelo menos até 2022.
Mas não é só isso. Há grandes chance de a doença se tornar endêmica, como a dengue e a gripe (influenza), por exemplo.
Para o médico epidemiologista Guilherme Werneck, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professor do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), as condições para o controle da epidemia no Brasil estão muito precárias, por isso ela não deverá acabar logo.
“Faltam vacina, organização e liderança e sobra irresponsabilidade dos agentes públicos”, critica.
“Começando pelas ações de contrainformação do governo federal, questionando a efetividade de máscaras, vacinas e do distanciamento social, e estimulando o uso de medicamentos ineficazes para prevenção e tratamento da Covid-19. É possível, embora ainda num horizonte distante, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declare o fim da pandemia, mas o Brasil continue tendo que lidar com níveis inaceitáveis de transmissão.”
Desse modo, ainda há um grande contingente de pessoas suscetíveis à doença em circulação. “Para um controle mais rápido, é necessário que mais pessoas (idealmente todos os acima de 18 anos) sejam vacinadas logo”, diz. “Isso cria uma barreira imunológica à disseminação do vírus.”
O mosquito Aedes aegypti é o principal transmissor de dengue, zika e chikungunya em regiões urbanas do Brasil — Foto: João Paulo Burini/Getty Images via BBC
De acordo com Trabasso, além da vacinação, é preciso testagem em massa, para identificar os potenciais transmissores e colocá-los em quarentena, e mais distanciamento social. “São as maneiras mais eficazes de conter a propagação da Covid-19”, explica. “Claro que a higiene das mãos e o uso de máscara também são importantes, mas são medidas individuais, enquanto que a imunização e aplicação dos testes são ações de Estado.”
A ausência de uma vigilância epidemiológica efetiva é outro aspecto problemático e preocupante da pandemia no país. “O Brasil tem recursos financeiros e profissionais capacitados para desenvolver um processo eficiente de identificação de casos, por meio de testagem e busca ativa, e quarentena para todos os infectados, com apoio financeiro que garanta que a população não perca renda”, diz a médica sanitarista Maria de Fátima Siliansky de Andreazzi, professora de Economia Política da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
O problema é que mesmo com a vacinação, o novo coronavírus não deverá desaparecer, ao contrário do que ocorreu o Sars-Cov-1, que causou a epidemia de Sars. “Algumas vacinas estão mostrando uma excelente proteção para prevenir formas graves de Covid-19 (a maioria, mais de 90%). No entanto, em algumas pessoas elas não conseguem impedir a infeção e, em muitos casos, a aparição de sintomas”, explica o médico Fredi Alexander Diaz Quijano, do Departamento de Epidemiologia, Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP).
De acordo com ele, o efeito que as vacinas terão na redução da transmissão é incerto, mas evidências indiretas sugerem que não eliminará totalmente a Covid-19. Um dos motivos disso é que novas variantes podem eventualmente conseguir escapar das vacinas – e talvez precisemos nos imunizar contra o coronavírus com a mesma frequência com que nos imunizamos contra a gripe, por exemplo.
Em outras palavras, a Covid-19 poderá ser tornar endêmica, como a Aids, dengue, gripe, malária e tuberculose, por exemplo. “Endemias correspondem a situações em que a incidência da doença não é tão elevada, mas que dura muito tempo, podendo sofrer variações sazonais, relacionadas às estações do ano, por exemplo”, explica o médico Marcelo de Carvalho Ramos, professor titular de Infectologia da FCM da Unicamp.
Para entrar na célula, o vírus SARS-CoV-2 se liga a uma molécula presente na superfície da célula (seu receptor) — Foto: Science Photo Library
Mas por que algumas doenças se tornam endêmicas e outras, não?
“Uma enfermidade infecciosa endêmica é aquela que conseguiu um certo equilíbrio na sua taxa de reprodução”, responde Quijano.
“Isto é, quando cada pessoa contaminada passa essa condição para (em média) uma outra. É o que se conhece como número reprodutivo efetivo (R), que é a média de novos infectados que alguém com o vírus produz diretamente. Em outras palavras, no caso das endemias o valor de R permanece próximo de 1.”
Quando esse número é superior a 1, então a doença progride rapidamente e causa surtos (ou até grandes epidemias), como é o caso da Covid-9, cuja estimativa do R, no início da pandemia, era 3. “Se esse valor é muito superior a 1 (por exemplo, maior que 10) ela se espalha depressa, às vezes tão rápido que se acabam rapidamente as pessoas suscetíveis a ela”, explica. ” Por outra parte, valores de R inferiores a 1 conduzem a que o número de casos progressivamente diminua, levando eventualmente à eliminação da doença numa comunidade.”
“O Sars-Cov-2 já se mostrou capaz de sofrer mutações, como demonstram as variante do Reino Unido, da África do Sul e do Amazonas”, diz Trabasso.
“Algumas delas, ou outras que surgirão, podem fazer com que haja escape do vírus à imunidade adquirida, seja pelo contato com a variante ‘selvagem’ seja por meio da vacinação.”
Segundo ele, esses mutantes poderão causar microssurtos, até que nova vacina surja e novo contingente populacional desenvolva imunidade suficiente, para criar uma nova barreira imunológica. E assim por diante.
Sem ações de prevenção coletiva, como o uso de máscaras, distanciamento social e higiene pessoal, somente a vacina não será capaz de interromper a transmissão — Foto: Getty Images via BBC
“É o que ocorre com a influenza, por exemplo”, explica Trabasso. “Todos os anos, a população tem que ser vacinada, porque podem ocorrer mutações no vírus e a imunidade adquirida pela infecção ou vacinação de anos anteriores não garante proteção contra a variante presente naquele ano. Assim deve se comportar o novo coronavírus daqui por diante.”
Werneck acrescenta outros aspectos que podem levar a Covid-19 a permanecer ainda por muito tempo entre os humanos. De acordo com ele, circulação do vírus só poderia ser interrompida com níveis altos de imunidade na população.
Ou seja, são imunizantes que protegem as pessoas, porque evitam que elas desenvolvam sintomas e formas severas da Covid-19, mas não impedem que se infectem e, eventualmente transmitam a infecção.
“Além disso, as vacinas utilizadas no Brasil (até o momento, a de Oxford-AstraZeneca e CoronaVac) têm efetividade da ordem de cerca de 70% mais ou menos, ou seja, têm boa eficácia, mas não nos níveis ideais”, diz Werneck. “Assim, mesmo com cobertura vacinal alta, ainda poderemos ter transmissão.”
Isso significa que, sem ações de prevenção coletiva, como o uso de máscaras, distanciamento social e higiene pessoal, somente a vacina não será capaz de interromper a transmissão. “Junte todos esses problemas num contexto em que faltam vacinas e que uma alta cobertura vacinal da população ainda vai demorar”, acrescenta Werneck.
“Estamos, então, em condições propícias para permitir a circulação do vírus e o aparecimento de novas variantes, tudo contribuindo para a permanência da infecção entre nós de forma endêmica.”
Por G1/Evanildo da Silveira, BBC